Serão as provas de aferição em formato digital um problema?

Apoiar os professores num processo formativo é fundamental, assim como requerer maior compreensão dos princípios pedagógicos que são específicos para o uso da tecnologia.

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Rui Gaudencio
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Decorreram durante os meses de maio e junho as provas de aferição dos alunos do 2.º, 5.º e 8.º anos de escolaridade, em grande parte das disciplinas, num formato digital. Neste artigo de opinião, refletimos sobre as provas que decorreram no 2.º ano, nos dias 15 de junho (Português e Estudo do Meio), e no dia 20 de junho (Matemática e Estudo do Meio).

Se, por um lado, podemos questionar a validade destas provas de aferição, nomeadamente, pelo facto de se realizarem no final de um 2.º ano, quando se promove a flexibilidade curricular ao longo dos quatro anos do 1.º Ciclo do Ensino Básico (acaba por colocar pressão sobre o desenvolvimento acelerado de competências); por outro, compreende-se a razão, quando entendermos o que significa aferir, que não é o mesmo que avaliar.

Entenda-se a aferição como forma de apurar o estado de desenvolvimento de competências em que os alunos se encontram, de modo que nos dois anos seguintes se possa, com base nos resultados aferidos, melhorar, adaptar e ajustar as competências ainda não desenvolvidas. Porém, o momento é entendido como uma avaliação comparativa e de mensuração de valores entre os alunos e as escolas, numa pressão enorme sobre os professores e os alunos, levando ao natural equívoco sobre este processo.

Relativamente ao facto de as provas de 2.º ano serem em formato digital para alunos de 7/8 anos, com menores competências digitais, também é verdade que esquecemos vários fatores, desde logo, que uma prova realizada em ambiente digital não deve ser uma réplica de uma prova em ambiente analógico (realizada em papel). Esse é um equívoco que deveria ter sido acautelado e explicado. A questão deste instrumento (tipologia de teste) ser contestado por não funcionar ou ser ineficiente num ambiente online, acontece por falta de compreensão, pois esse mesmo instrumento também já não funciona no ambiente analógico.

Outro dos argumentos para que esta prova não fosse realizada num formato digital é a indicada falta de competências digitais dos alunos. Porém, esta também se deve à ausência de experiências de integração digital ao longo de dois anos letivos de Plano de Ação para a Transição Digital (PTD).

Poderemos, eventualmente, discutir a ausência de planeamento por parte do Ministério da Educação (ME), desde logo a questão associada à qualidade dos equipamentos, ausência de tomadas para a energia dos mesmos, salas preparadas para ambientes digitais, mas também com a distribuição de dois turnos para a realização da prova, poder ser online e offline, ou a necessidade de instalação de uma aplicação (para os alunos não copiarem — como se essa questão apenas se colocasse em ambientes digitais) sem que tenha sido antecipada a necessidade de técnicos de informática no apoio à sua operacionalização (ao invés de solicitar a professores de informática algo que não é da sua competência).

Assim, não podemos negar que os alunos deveriam também usar a tecnologia em sala de aula, nas suas diversas atividades, independentemente de realizarem provas de aferição (ou não), o que levaria a estarem, agora, ambientados ao processo. Isso fica claro para todos os alunos que estão envolvidos em diversos projetos pedagógicos, em que a manipulação e integração desse digital em processos de aprendizagem já acontecia, quando tais alunos não têm dificuldades quando pesquisam, escrevem, leem, gravam, interagem com o digital desde os 6 anos, naturalizando o processo de aprendizagem.

Se pais e professores compreendem o uso lúdico do digital fora da escola, não será altura de fazer parte de todas as aprendizagens, quando se antevia estas provas desde o início deste ano letivo? Não questionamos a utilização de outros tipos de tecnologia e recursos, porque esses estão naturalizados no processo educativo.

Nos últimos anos tem havido esforços para impulsionar o digital na educação, embora com pouco planeamento estratégico, que não pode apenas ser o de depositar equipamentos nas escolas. Também é verdade que a maioria das escolas não tem uma ideia ou visão concetual para a aprendizagem digital, e não é capaz de refletir sobre a mudança digital como parte do seu desenvolvimento sistemático escolar e pedagógico. Mesmo com a existência de diversos Planos de Ação para o Desenvolvimento Digital das Escolas, estes surgem como mais um documento estratégico que muitas vezes fica apenas no papel, como tantos outros da mesma índole.

O plano de transição digital não previu qualquer apoio para além das infraestruturas e dispositivos. A transformação digital é um processo que se sobrepõe em todos os domínios educativos e a integração tecnológica deve estar envolvida no ensino e na aprendizagem. Tais questões incluem o desenvolvimento de objetivos de aprendizagem, a seleção de métodos de instrução, feedback e estratégias de avaliação, incluindo atividades de acompanhamento. Temos de ter presente que o valor acrescentado não reside no facto de permitirem que objetivos antigos sejam alcançados mais rapidamente, mas permitirem, pela primeira vez, a abertura de dimensões objetivas de aprendizagem inteiramente novas.

Os objetivos de aprendizagem, que podemos alcançar numa aula baseada apenas em livros e escrita são significativamente diferentes dos objetivos que podem ser perseguidos usando (também) meios digitais. Esta relação complexa é crucial para a compreensão da cultura do digital e não podemos estar sistematicamente a compará-las perseguindo os mesmos objetivos e resultados. Devemos reconhecer ambos: a natureza da tecnologia e a influência que ela tem na pedagogia.

Portanto, temos de ir muito mais longe do que a tecnologia utilizada para a aprendizagem, de forma que esta seja parte integrante da instrução e não como um objeto exclusivo de si mesma. A tecnologia não pode ser vista apenas como uma aplicação mecânica de vários novos dispositivos informáticos de hardware e software e apenas adicionando uma componente online à aprendizagem presencial tradicional.

Em vez disso, devemos adotar uma abordagem mais integrada e natural, uma mudança do design instrucional para o design da experiência de aprendizagem, com nova abordagem e novos objetivos. Para isso, apoiar os professores num processo formativo é fundamental, assim como requerer maior compreensão dos princípios pedagógicos que são específicos para o uso da tecnologia, por parte da sociedade (direções, famílias e alunos).

O digital pode oferecer ajuda, mas deve ser natural de forma significativa no processo de ensino e de aprendizagem, como têm sido tantas tecnologias não digitais ao longo da história da educação, para deixarem de ser problema, e sim, uma naturalização!


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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