PL490: “Tupi, or not Tupi, that is the question”

A luta contra o PL490 não é só uma luta indígena. Portugal, nação que primeiro derramou sangue indígena em território brasileiro, deve estar empenhado nesta luta.

Foto
Megafone P3: PL490: Tupi, or not Tupi, that is the question Reuters/Adriano Machado
Ouça este artigo
--:--
--:--

Esta terça-feira, a Câmara dos Deputados brasileira prepara-se para desferir um dos mais duros golpes contra os povos originários brasileiros e ecossistemas onde vivem e resistem, mas também contra todo o planeta. Se for aprovado, o projecto de lei PL490/2007 retira à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) o poder de demarcação de novas terras indígenas, passando-o para a própria câmara, e estabelece o chamado marco temporal.

Segundo o “marco”, se os povos que hoje reivindicam uma terra demarcada não a ocupavam em 1988, data da Constituição, perdem automaticamente o direito a ocupá-la. Além disso, o projecto facilita o acesso a povos isolados por questões de “utilidade pública” e descarta a consulta prévia dos povos de cada terra indígena para o estabelecimento de centrais hidroeléctricas, projectos de mineração, entre outros. Com a libertação praticamente plena de todas as terras indígenas para os interesses extractivistas, o PL490 não só é uma ameaça a futuras conquistas, como a tudo o que foi conseguido até agora.

Os povos indígenas brasileiros não foram “descobertos” nem em 1500 nem em 1988, resistem há séculos à contínua colonização, tanto estrangeira como dos próprios brasileiros não indígenas, longe da narrativa de que as práticas genocidas contra estes povos se limitaram à expansão colonial ibérica, num passado distante.

No que toca a terra indígena, a mão do mercado tem sido claramente visível. Sob o lema “terra sem gente para gente sem terra”, a ditadura militar e as estradas e ferrovias que cortaram o país há 40 anos arrasaram milhares de vidas. Depois da democracia, somou-se o alagamento do Xingu por Belo Monte ou os constantes assassinatos de indígenas da Bahia ao Acre.

Quando a fotógrafa suíça Claudia Andujar resolveu dedicar a vida aos Yanomami, comparando o seu genocídio ao que o seu próprio povo judeu sofreu no Holocausto, esteve longe de exagerar: leiam sobre os Yanomami ontem e hoje, mas também sobre o extermínio dos Waimiri Atraori, da luta dos Tenharim, do extermínio aéreo dos Cinta Larga, da caminhada da morte dos Araweté.

Os Ava Canoé, por exemplo, após décadas de massacres por fazendeiros foram sequestrados pela Funai na década de 1970 e levados para longe do seu território. Em 1988, reduzidos a 14 elementos, não estavam, obviamente, na terra que ocupavam historicamente. Se, no passado 28 de Abril, essa terra indígena foi uma das seis primeiras a serem demarcadas pelo novo Governo, com o PL490 não seria mais.

Apesar da devastação, os povos originários do Brasil têm desafiado todas as convenções e provado que outro mundo é possível. Contrariando as forças que promovem a sua morte e apagamento, hoje ascendem a mais de meio milhão e ocupam lugares no Governo, nas universidades, na cultura, nas ruas. Não estão aculturados, mas empenhados nesse processo inglório de “amansar o branco”.

Porque sabem que, como diz Ailton Krenak, que “no dia em que não houver lugar para o índio no mundo, não haverá lugar para ninguém”. A sua luta é a de todos, não só por garantirem a efectiva sobrevivência da vida no planeta, garantindo o oxigénio, a diversidade de espécies ou a contenção de pandemias que, com a morte da floresta, já despontam.

A sua luta é a nossa porque o ser humano não é uma máquina, mas uma multiplicidade de vivências, de relações com a natureza, de gestos e de palavras. Há quase 100 anos Oswald de Andrade escrevia “Tupi, or not Tupi that is the question”. Efectivamente, no dia em que deixar de se escutar tupi na terra, é a própria existência humana que fica em causa.

A luta contra o PL490 não é, portanto, só uma luta indígena, nem tampouco uma luta brasileira. Também não é, como a ala extractivista defende, um atentado à soberania brasileira, uma vez que é precisamente sobre essa soberania de que fala. A luta contra o PL490 deve estar nas bocas diplomáticas e ruas do mundo inteiro.

Se a questão ambientalista é tão importante para o Ocidente, que demonstre com veemência ao legislativo brasileiro que não deixará “a boiada passar”. Todo o Brasil é terra indígena. Se é nosso “pais irmão”, como ainda este Abril tanto se repetiu, que o seja como é, e não como o queremos pintar. Portugal, enquanto nação que primeiramente derramou sangue indígena em território brasileiro, deve, mais que qualquer outra, estar política, diplomática e civicamente empenhado nesta luta.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários