Pelé, o último herói cantado por Homero

Nunca vi interesse (nem maneira) de escolher o melhor de sempre, nem sequer o melhor do momento, mas admito um fraco por Pelé.

No futebol, Maradona foi o muro de Berlim que exilou para sempre o preto e branco. Antes de Diego, e das transmissões regulares, e dos resumos das jornadas internacionais, os golos dos deuses chegavam-nos, exclusivamente, por versões modernas do grego Homero, que era cego. O jornalista e dramaturgo Nélson Rodrigues, por costume abusado em artigos deste género para simular erudição do autor, era quase cego e, em cima disso, nunca permitia que a realidade estragasse um bom jogo de palavras, mas o meu mundo de Pelé é o dele, dos poetas, músicos, escritores, relatadores míticos e jornalistas.

Nenhum desses poetas, escritores, relatadores e jornalistas viu Pelé como você ou eu podemos rever, ainda hoje, Maradona, Zidane ou Van Basten. Alguns acompanharam-no no Santos, outros viajaram nas digressões, outros cobriram a ponta final no Cosmos de Nova Iorque, mas há pouquíssimos vídeos dos muitos jogos que cada um deles não viu, incluindo daqueles que ficaram para a lenda como os dois melhores golos da história do futebol (e que morrerão com as últimas testemunhas). Edson Arantes do Nascimento pertence ao domínio da fé, daí a impossibilidade de o compararmos com seres 100% corpóreos como Maradona e Messi, cujas vidas na relva podemos reconstituir quase ao minuto e depois pesar ao quilo, como na mercearia.

Fiz uma busca no Google e encontrei três notícias diferentes em português, sobre Messi, publicadas nas últimas três horas. Pelé deixava o mundo a duvidar dos próprios olhos, e da existência dele, durante quatro anos, a menos que uma digressão do Santos encurtasse o martírio a um continente qualquer cheio de sorte. Pelé era o derradeiro mistério num tempo em que até não faltava mistério ao futebol. Aos 17 anos, apanhou de surpresa soviéticos, ingleses, austríacos e suecos para ser campeão do mundo. Mal conheciam os mais velhos, muito menos aquele pintainho caído de paraquedas. Aos 16 anos, Endrick, do Palmeiras, já tem todos os ossos mapeados e com o código de barras do Real Madrid. Ouvimos falar dele, regularmente, desde os 15. Para voltar a surpreender os suecos, talvez só recuando ao jardim-escola, e mesmo assim...

Nunca vi interesse (nem maneira) de escolher o melhor de sempre, nem sequer o melhor do momento, mas admito um fraco por Pelé, talvez por ter sido a única criança que vi ganhar um Mundial, se não tanto na idade, pelo menos na alegria genuína em campo, tão diferente da atual, e na inocência que o fazia pedir perdão a Deus de cada vez que os olhos lhe fugiam para uma sueca em topless. Se tivesse um Deus e uma sueca, fazia o mesmo, em homenagem.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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