Temos “um modelo de ensino do século XIX com alunos do século XXI”
O ensino clássico na era digital não corre o risco de desaparecer, mas tem de evoluir. A poucos dias de se completar um ano sobre o decreto do primeiro confinamento, é fundamental reflectir acerca do que foi ou não feito e que futuro está reservado ao ensino como o conhecemos até então. Especialistas convidados para o PSuperior Talks fizeram-no. E apontaram soluções.
“A notícia da minha morte é manifestamente exagerada”: a famosa frase de Mark Twain após a notícia num jornal acerca do seu falecimento pode adaptar-se ao momento em que se encontra o ensino tradicional. Será que vai desaparecer? As novas tecnologias vão apagar a figura do professor? Aulas totalmente digitais, ou o regresso ao modelo clássico de professor e alunos nas salas de aula? Que raízes pode esta experiência deixar para o futuro? Como fazer com que a tecnologia seja um facilitador no ensino? Foram estas algumas das questões às quais o debate online “O Ensino na Era Digital – A Escola que conhecemos está a acabar?”, do ciclo PSuperior Talks, tentou apontar caminhos, esta terça-feira.
Estando o país prestes a assinalar um ano sobre o decreto do primeiro estado de emergência, devido à pandemia de covid-19, é fundamental fazer uma análise ao que entretanto aconteceu no sector do ensino e tentar antecipar o que podem esperar alunos, professores e encarregados de educação nos tempos que se avizinham. O regresso parcial das aulas presenciais parece ser uma hipótese para breve, mas ainda não há confirmação oficial, apesar dos caminhos apontados por alguns especialistas.
Foram convidados para o debate Paulo Rebelo Gonçalves, director de Comunicação da Porto Editora, Rui Pacheco, responsável pelo projecto de e-learning da Escola Virtual, Mauro Figueiredo, professor na Universidade do Algarve, e a doutoranda em Psicologia Luana de Mello. A moderação ficou a cargo de de Bárbara Wong, editora do PÚBLICO. A abertura foi feita pelo reitor da Universidade do Algarve, Paulo Águas, e pelo director do PÚBLICO, Manuel Carvalho.
Com a explosão das novas tecnologias, como auxiliares educativos, uma das questões que paira é saber que papel vai ter o professor do futuro. Entre os convidados a opinião é unânime: nenhuma tecnologia pode dispensar o papel do professor junto dos alunos, ainda que com as nuances próprias dos tempos actuais. Paulo Rebelo Gonçalves sintetiza: “O professor tem um lado humano no processo de ensino que é incontestável.”
Mauro Figueiredo acrescenta que, “depois de numa primeira fase de adaptação dos professores ao ensino à distância, começa-se agora a pensar mais nos conteúdos pedagógicos”, com maior interactividade entre ambas as partes: “O modelo de ensino actual é muito expositivo, centrado no professor, e agora é tempo de fazer a transição para um mais centrado no aluno. Devemos aproveitar esta oportunidade para evoluir, porque a educação continua a ser o elevador social mais eficaz.”
Um dos temas que mais tem merecido a atenção dos agentes ligados ao ensino é o da falta de ferramentas (computadores, acesso à Internet, formação específica) para professores e alunos para as aulas à distância. Rui Pacheco recorda que “a tecnologia sempre existiu, mas sempre de forma complementar”. O responsável pelo projecto Escola Virtual fala em mudança e dá como exemplo os cerca de 40 milhões de acessos que a plataforma teve em 2020, para sublinhar que “o ensino híbrido vai acentuar-se. Haverá interacção dentro da sala de aula, como complemento do que o professor sugerir aos alunos, em casa ou na sala”.
Rui Pacheco destaca o papel cada vez mais relevante que a inteligência artificial terá no ensino. Através de algoritmos, transformará “o professor mais num tutor, permitindo-lhe um trabalho de melhor qualidade, baseado menos na dedução de como o aluno pode aprender e mais em dados concretos”.
As tecnologias actuais permitirão, de acordo com este painel, que alunos que partam de patamares diferentes, com ritmos de aprendizagem diferentes, não sejam deixados para trás. Mauro Figueiredo fala por experiência própria: “Os alunos dos primeiros ciclos do ensino necessitam de aulas síncronas [em directo com o professor]. Mas, depois, vemos os alunos a trabalhar mais, a ganhar motivação. Estamos a conseguir que os alunos tenham boa formação académica, sem com isso baixar o grau de exigência.”
Paulo Rebelo Gonçalves sublinhou, por seu lado, o papel que ferramentas como o telemóvel (hoje proibidos nas salas de aula) podem desempenhar no desenvolvimento do ensino. “Deve ser um elemento complementar no processo de ensino, integrado com diferentes recursos, de modo a que o professor possa ensinar melhor e o aluno possa tirar mais proveito dos conteúdos. Por que não permitir o seu uso para fins educativos na sala de aula e retirá-lo nos intervalos?”
Em síntese, o ensino está obrigado a evoluir, pois, como defendeu Mauro Figueiredo, “este é um modelo do século XIX, com alunos do século XXI”. No caso da figura do professor, Paulo Rebelo Gonçalves fez notar que “a aprendizagem é tão ou mais eficaz quanto o factor humano estiver presente. O ser humano é um animal social, precisa de contacto”, enquanto Luana de Mello acredita que as tecnologias agora ao dispor permitem “fomentar o espírito crítico, valorizar a comunicação, dar maior sentido humano às novas tecnologias, porque nunca mais vamos viver sem elas”.