O apetite de Miguel Flor está impresso e espalhado nas paredes de Lisboa

Depois de fotografar nos Açores, o projecto Boys Apettite do fotógrafo e designer de moda Miguel Flor tomou conta de algumas ruas de Lisboa, com posters sem caras e sem marcas, mas com erotismo.

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Há 50 posters sem assinatura espalhados por algumas ruas de Lisboa. Hélio Carvalho

Nos cantos de Lisboa pairam posters sem nome, sem marcas, sem produtos, que contrastam com os milhares de anúncios publicitários. Posters com fotos de corpos masculinos, fotografados por Miguel Flor, que representam o apetite e o simples erotismo quotidiano da juventude, espalhados fora das galerias e entregues à cidade.

As fotografias foram tiradas pelo fotógrafo e designer de moda no contexto do Boys Appetite, um projecto fotográfico que Miguel Flor começou a desenvolver a partir de 2017, numa passagem por Berlim. Já há fotografias publicadas num livro editado pela Stolen Books, mas estes posters são fruto de um trabalho desenvolvido para o festival Walk&Talk, que se realizou em Ponta Delgada, na ilha de São Miguel, nos Açores.

Ao P3, sentado num café perto da localização de alguns destes posters, na Rua da Boavista, Miguel Flores conta que a ideia de fotografar a zona do pescoço, da nuca, dos ombros e das costas surgiu naturalmente e representa a procura, o “apetite”, pelo erotismo e por uma “acendalha”.

Fotografias foram tiradas durante o festival Walk&Talk, nos Açores Miguel Flor
Miguel Flor
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Fotografias foram tiradas durante o festival Walk&Talk, nos Açores Miguel Flor

Nenhum poster tem cara nem marca: são a completa oposição ao trabalho habitual de Miguel Flor, editor criativo e fotógrafo para a revista de moda Prinçipal. “Não estou a vender nada e por isso é que o sujeito dos posters tem peso: de repente, vês posters na rua que não têm uma identificação, não têm um produto, não dizem Renova, não dizem Dior, não dizem nada. É só uma imagem, que te leva onde tu quiseres. Dá-te muito mais espaço, não te está a vender nada a não ser um erotismo, a não ser uma sensação, a não ser... Arte!”, exclama o artista.

Além disso, tanto o livro como os posters têm um intuito acrescido de retratar a comunidade por onde o fotógrafo passa. O livro conta com fotografias em clubes de Berlim, em praias na Grécia, em viagens de Telavive até Jerusalém, e os posters retratam as pessoas de Ponta Delgada. Miguel Flor considera que as fotografias têm, então, um “carácter documental muito grande”. “Eu aproveitei as viagens que faço em lazer, ou às vezes em trabalho, para documentar, fazer um levantamento da comunidade que vive nesses sítios. Isto de alguma forma é um documentar da juventude, da comunidade”, revela.

Alguns posters foram retirados, roubados, ou desapareceram com a chuva Hélio Carvalho
Na rua, são gratuitas, mas é possível comprar os posters online Hélio Carvalho
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Alguns posters foram retirados, roubados, ou desapareceram com a chuva Hélio Carvalho

Projecto arrancou graças a um autocolante

O apetite explicado e retratado por Miguel Flor começou por ser fotografado em Berlim. Depois de uma festa de 1 de Maio, o fotógrafo recorda a memória de ver um autocolante num poste de electricidade que dizia simplesmente “appetite”. De câmara na mão, Miguel apontou e disparou.

“Via na rua uma espécie de vibração do 1 de Maio, que é festejado fortemente em Berlim - techno por todo o lado, uma festa muita viva na cidade, muitos jovens. Achei piada ao appetite e àquele ambiente. A partir daí, comecei a fazer hashtags em fotografias que tirava: via um polícia, fotografava e escrevia ‘#policiappetite’, umas brincadeiras desse género”, explica.

Miguel folheia o seu livro e pára numa página onde estão impressos o pescoço e os cabelos loiros de uma mulher. A única de toda a série. “O Boys Appetite não tem propriamente fronteiras, no sentido em que pode ser o apetite ‘por’ ou o apetite ‘de’. Ela era uma rapariga extremamente bonita. Eu fotografei um amigo dela na praia, que é este rapaz (aponta para outra fotografia), e percebi que ele era um sucesso, toda a gente lhe achava piada. E outro rapaz, ao lado dela disse, que toda a gente achava piada a ele... E a ela! Ela representa o apetite dos rapazes.”

Há também fotos de motos, de etiquetas de vestiários em clubes e discotecas, carros e uma boca-de-incêndio. Todas as fotografias têm com “um carácter obviamente sexual”. “Há partes mais nocturnas, elementos mais fálicos. Além disso, o club tem muito a ver com o corpo, dançares, tirares a roupa, e remete para aí”.

As fotografias em viagem são o mais comum, mas há uma linha constante da cultura de clubbing. As já referidas fotos a vestiários são emparelhadas com pescoços suados a dançar, casas de banho e luzes de discoteca. Imagens que acompanham a vida de Miguel Flor, que antes de pegar nas câmaras e na moda, pegava em discos.

“A juventude em si, esta vibe, esta pulsão, é uma coisa que me interessa muito. Vou a festas mais ligadas a clubs e techno e, provavelmente, sou a pessoa mais velha. Pus música nos anos 90, fazia parte da rave culture, conhecia os DJ todos, pus música no Lux (Lisboa), no Passos Manuel e no Plano B (Porto)… A música, a dança, o corpo, todos esses movimentos têm uma expressão muito grande em mim”, esclarece o fotógrafo e designer.

De Ponta Delgada às paredes de Lisboa

A série de posters no continente começou por estar limitada a Alvalade e Marvila, antes de passar para pontos na baixa lisboeta, mas os cartazes começaram por ser afixados nos Açores. Miguel Flor é curador no Walk&Talk, um festival de artes visuais que se realiza anualmente em Ponta Delgada. Em 2020, os moldes foram obrigatoriamente diferentes devido à pandemia e o designer de moda viu-se levado a assumir também o papel de artista residente.

"Éramos 15 pessoas a trabalhar e a desenvolver produtos e peças para artistas que estavam cá no continente. O que lhes propus foi fazer um levantamento fotográfico da comunidade através do projecto Boys Appetite e rapidamente percebemos que, se eu estava lá, poderíamos fazer algo localmente. Como neste momento as pessoas estão muito avessas a meter-se em locais com limite de capacidade, sugeri-lhes desenvolver os posters e espalhá-los por Ponta Delgada”, conta o fotógrafo.

Os posters foram então afixados sem sequer ostentarem o nome do festival - que celebraria a 10.ª edição este ano, mas decidiu adiar a festa e designar a edição como Walk&Talk 9.5. Durante duas semanas, Miguel Flor fotografou, imprimiu e apresentou os posters à cidade e a aceitação foi “muito interessante”.

“As pessoas em Ponta Delgada, que, naquele período do ano, percebem que a cidade sofre algumas mutações - mais um mural que surge, mais uma obra ali -, perceberam rapidamente que aquilo pertencia ao Walk&Talk”, disse Miguel. Sem qualquer promoção, o projecto ficou conhecido através do boca-a-boca ou de publicações nas redes sociais. “É uma forma muito mais orgânica. Não se partilha publicidade desta forma, sem marca e sem produto. Tem imensa piada, acabou por superar os meus objectivos.”

Depois do Walk&Talk, Miguel Flor continuou a fotografar durante mais uma semana e, no final, sobraram 50 posters por afixar. “A primeira ideia era colá-los em Marvila e em Alvalade, mas rapidamente percebemos que eram sítios de passagem, e eu próprio percebi que não queria dar só aquilo àquelas pessoas ou às pessoas do círculo das artes, preferia que a coisa fosse mais abrangente. Decidimos colar pela cidade, em sítios que já tinham outros posters e que a cidade usa para comunicar.”

Alguns posters foram entretanto removidos, outros roubados. Ao passar por um dos pontos onde deveria estar uma das imagens, Miguel repara que está a faltar alguma coisa e lamenta: “Aqui já tiraram um.”

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O livro do projecto "BOYS APPETITE" foi publicado em Janeiro deste ano Hélio Carvalho

Miguel e a Stolen Books colocaram toda a arte, os posters e o livro, à venda no site da editora. Os 50 posters já não estão todos vivos, mas muitos ainda podem ser encontrados em Lisboa, na Avenida Almirante Reis, na Rua do Alecrim, na Rua da Boavista, no Cais do Sodré e em Santos.

Para já, o projecto fica por Ponta Delgada e Lisboa. Nas ruas, fica impresso o apetite do fotógrafo, uma marca sem produto e um produto sem marca, afixados nas paredes.

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