Em vez de aviões, andorinhas

Testemunho de Luiza Teixeira de Freitas, curadora independente. “Estou perante um certo vazio, um nada. Não necessariamente um ‘mau’ nada, mas um nada ainda assim. Nenhuma urgência, nenhuma viagem, nenhum lugar onde possa, tenha de ou queira ir. Um calendário sem eventos.”

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Annie Spratt/Unsplash

Sou curadora independente de arte contemporânea. Grande parte do trabalho que faço é fora ou para fora de Portugal. Globetrotter é provavelmente a palavra que melhor define a forma como vivo. Glamour e sofisticação podem sem dúvida ser, aos olhos de tantos, o que caracteriza a vida de quem, como eu, saltita de cidade em cidade coleccionando histórias, experiências e muitas milhas. É uma imagem cada vez mais desacertada da realidade.

Facto é, que a par com o crescente movimento de slow living, que tem vindo a ganhar espaço e a dissipar o encanto dessa existência vivida de malas prontas à porta de casa, está também um cansaço profundo, físico e mental, que este estilo de vida frenético aporta. Além disso, tenho a noção de que a vida que levo é de uma extrema hipocrisia com a crise ambiental que vivemos e de que a minha pegada ecológica contribui diariamente para a insustentabilidade global do planeta.

Terá este ir-e-vir os dias contados?

Se o mundo não estivesse virado de pernas para o ar, estaria eu hoje em Beirute, no Líbano, onde fui convidada para fazer a curadoria de uma exposição colectiva com 20 artistas internacionais. Um projecto preparado e produzido ao longo do último ano, que punha em diálogo ideias de pertença, de identificação cultural e de mutações geográficas.

Não fui. Não haverá exposição e ninguém se irá encontrar ou celebrar.

Do dia para a noite praticamente todos os meus trabalhos foram adiados ou cancelados. Estou perante um certo vazio, um nada. Não necessariamente um “mau” nada, mas um nada ainda assim. Nenhuma urgência, nenhuma viagem, nenhum lugar onde possa, tenha de ou queira ir. Um calendário sem eventos.

No panorama das artes visuais, não só antecipo como espero realmente que venham mudanças. Serão tempos difíceis, sem dúvida, mas é impraticável continuar ao ritmo a que se ia — bienais, feiras, exposições, inaugurações, festivais —, um frenesi desmesurado ao humanamente possível. Quem sabe se, ao sermos forçados a notar as nossas próprias vidas, consigamos desacelerar a aparente inexorável pressa do mundo. Este pensamento último é de Susan Cheevers quando escreve a biografia de E.E. Cummings, comparando-o a Duchamp, Stravinsky e Joyce, todos exemplos opostos ao que vivemos neste século XXI, onde “acesso sem entendimento e factos sem contexto tornaram-se a nossa dieta diária”.

Nesta pausa forçada, mas, no meu caso, tão bem-vinda, no silêncio de um céu sem aviões, onde não me recordo de tão nitidamente ouvir as andorinhas que anunciam a Primavera, lembro-me inevitavelmente da minha Mãe, ser humano incrível, inteligente, completo — não só pelas andorinhas, favoritas suas, mas por ter deixado de herança a Alice e Joaquim, seus netos, a mais bela biblioteca de livros para crianças que se possa imaginar. No meu diário de quarentena é difícil fugir ao romantismo. Mergulhámos, eu e os tais herdeiros, num mundo paralelo de imaginação e fantasia onde os livros, as histórias, são mote para tudo.

Não minto, é bastante complexo para mim ficar em casa, simplesmente porque a minha natureza está “no outro”. Penso diariamente nos que estão sós, nos profissionais dos hospitais, nos que perdem quem amam sem se poder despedir, nos que têm medo, fome e frio. Penso e ajudo o quanto posso, que me parece sempre pouco. Acabo por me resignar e, conforme me foi pedido, fico em casa. Penso no futuro, no amanhã, no que teremos de enfrentar, de viver, de reinventar, e como eterna optimista que sou, tenho esperança de que a arte possa novamente cumprir o seu maior propósito.

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