E a seguir?
A sobrevivência face ao risco causado por um vírus moveu montanhas e universalizou o estado emergência contra ele. Começa a ser tempo de promover debates sobre a eventual adopção de um novo modelo de desenvolvimento.
A pandemia demonstrou que os países não estavam preparados para lhe responder, tendo mesmo alguns adoptado posturas que criaram perplexidades. Houve meios humanos e equipamentos hospitalares que escassearam, tal como bens de protecção individual, ocorrendo ainda desvios de mercadorias por países de trânsito encomendadas por terceiros em actos de pura pirataria. Outras, pagas à “cabeça”, não chegaram no prazo ajustado ao legítimo adquirente, indo parar a diferentes destinatários. Estas práticas ofendem o Direito Internacional.
A solidariedade, mesmo a devida a países do mesmo espaço supranacional, foi banida, como sucedeu com a humanista, civilizada e desenvolvida UE face à ausência de resposta a Itália, indiferente a esta ser sua fundadora. Cada um por si, todos ao molho e fé em Deus.
Os exemplos ilustram o mundo que se foi construindo por ditames impostos à política por abstractos e invisíveis mercados, tendo por porta-vozes agências de notação e entidades financeiras não eleitas que têm rosto com a forma do dinheiro. A trajectória para este fim iniciou-se com a queda do mundo bipolar criando-se em muitos casos uma concepção de democracia de consumo, não de cidadãos, por vezes aplicada de forma mecanicista sob o primado da economia e das finanças.
A filosofia de base foi-se impondo inclusive a partidos políticos insuspeitos, acabando por irem na corrente da moda que “a menos Estado corresponde melhor Estado”. Esta base acabaria por afectar funções essenciais dos Estados, desde a Política Externa à Justiça, terminando na Defesa.
Olof Palme, Willy Brandt, Kreisky, Mitterrand, Soares e outros que não se limitaram a gerir o que existia já não estão entre nós, mas o que defenderam continua vivo. O combate à covid-19 prova a razão do Socialismo Democrático.
Para além do debilitamento das funções do Estado a que assistimos com o neoliberalismo, a deslocalização de empresas para países de mão-de-obra barata, de par com a venda de empresas estratégicas sob o domínio nacional de vários países, enfraqueceram a capacidade produtiva destes. Quando foi necessário, como agora, faltaram em geral equipamentos e bens de protecção individual.
O estado de emergência abriu portas à compreensão do que precede com o Estado a ser chamado para a linha da frente em defesa das empresas, do emprego e dos salários, arrastando serviços públicos como os da saúde, da segurança social e das forças de segurança no combate à covid-19.
No que a Portugal respeita, fomos longe de mais na decapitação de parte de funções soberanas a pretexto de verbas decorrentes das privatizações incluídas no Memorando da Troika. Ultrapassámos em três vezes mais a previsão das verbas aí constantes. A venda de empresas estratégicas sob o domínio nacional foi total, não escapando bancos e seguradoras.
Não é de admirar que um país produtor de vinho como é Portugal seja hoje importador de álcool tão necessário à fabricação de desinfectantes. O resultado do modelo neoliberal vê-se à vista desarmada.
Em função desse resultado, não vejo como será possível compatibilizar a participação de Portugal na UE com o aprofundamento das relações com a lusofonia, instrumento essencial à afirmação do país no mundo. Compreende-se, por isso, que tendo sido Portugal pioneiro na criação de Cimeiras UE-África, lhe escape agora a realização de mais uma à data em que o país presidir à UE em 2021. Estamos informados que será a Alemanha a promover essa Cimeira já no próximo semestre, apesar da determinação de Portugal em o desejar. Aliás, uma importante Fundação criada então por bancos com domínio nacional com o objectivo de aprofundarem as relações com os Países Africanos de Língua Portuguesa tem agora os dias contados a prazo.
Nessa mesma lógica, uma empresa portuguesa de bandeira, tal como instituições financeiras agora também sem domínio de capital nacional, deixaram voluntariamente depois disso de serem filiadas numa associação de interesse público tendo por objectivo o aprofundamento das relações com a lusofonia. Há, pois, que reflectir sobre um eventual novo modelo de desenvolvimento que desejamos para o futuro e com que instrumentos Portugal conta.
Oportunamente escreverei sobre as funções do Estado, como a justiça e a defesa, e também da porta giratória entre os negócios e a política e o que a isso conduz. Não é tarefa fácil a desta reflexão, porque o mais fácil é continuarmos no modelo que vimos seguindo, escamoteando pensar no que é difícil e sem cuidar de respostas a um desenvolvimento humano, solidário, sustentável e de afirmação de Portugal no mundo. Só que o que vimos seguindo não tem futuro.
Daí a pergunta que me parece a mais importante fazer agora – E a seguir?