A Maria e a pandemia: a ciência cura, mas é um campo de batalha!
Poderíamos falar de guerra, mas a Maria preferia falar de ciência e do conhecimento confiável que resulta da acumulação e aplicação rigorosa do conhecimento científico. De facto, como tão bem escreveu e repetiu durante as últimas semanas, “o inimigo não é o vírus, o inimigo é a pessoa que se mantém suficientemente próxima de outra para dar a oportunidade ao vírus de saltar de uma célula para outra”.
Maria de Sousa deixou-nos esta noite vítima do coronavírus SARS-CoV-2 e da doença covid-19, após cerca de uma semana de internamento em hospitais de Lisboa e sujeita a cuidados intensivos nos últimos dias. Com 81 anos, cientista de reconhecimento internacional, professora emérita da Universidade do Porto, mulher da cultura, de notoriedade tão confirmada como controversa, sabia sempre fazer as perguntas certas no local certo. Como dizia frequentemente, só tem respostas quem faz perguntas!
E a Maria sabia bem o que estava a passar. Imunologista “preocupada”, como recentemente se autointitulou, mas sobretudo imunologista de reconhecimento internacional, sofria de uma insuficiência renal crítica, entre outros problemas cardiovasculares. Habituada a viver entre as elites científicas de Nova Iorque, do Porto e de Lisboa, com contactos internacionais por todo o mundo e sobretudo na América do Norte, sabia bem que seria mais bem tratada em Portugal. É assim que, neste momento de profunda tristeza, só podemos agradecer e reconhecer aos médicos e profissionais de saúde que cuidaram da Maria e que, todos os dias, cuidam de mulheres e homens com carinho e rigor. Sim, com rigor, pois como a Maria nos ensinou, “ciência é rigor”!
Poderíamos falar de guerra, mas a Maria preferia falar de ciência e do conhecimento confiável que resulta da acumulação e aplicação rigorosa do conhecimento científico. De facto, como tão bem escreveu e repetiu durante as últimas semanas, “o vírus não é o inimigo, nem uma pandemia é uma guerra. O vírus é uma pequena partícula que precisa de entrar nas células para se manter e se propagar. O inimigo não é o vírus, o inimigo é a pessoa que se mantém suficientemente próxima de outra para dar a oportunidade ao vírus de saltar de uma célula para outra.”
Por outras palavras, mas voltando a citar a Maria, “a infeção viral só se pode perceber no contexto do hospedeiro, no âmbito do qual o sistema mais importante é o sistema imunológico”. A má notícia é que a Maria não resistiu... Mas a boa notícia é que temos hoje em Portugal muitos cientistas de reconhecido mérito nesta área, para a formação dos quais a Maria contribuiu de forma decisiva.
O campo de batalha é, portanto, a ciência. E a batalha só se vence com mais ciência, com mais jovens a fazer ciência de qualidade e com o tempo que a ciência nos exige, sobretudo após a utilização sistemática da avaliação científica independente.
Relembro que foi com a Maria de Sousa, com Fernando Lopes da Silva, que aprendemos a ser sujeitos em Portugal a avaliação científica independente, quando José Mariano Gago era presidente da JNICT no final dos anos 1980. Inicialmente testada para as ciências da vida sob a liderança da Maria, esta prática que hoje nos parece tão óbvia, só viria a ser alargada a todas as outras áreas científicas há 25 anos, com a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia.
E foi ao longo desses anos que aprendi a respeitar Maria de Sousa pela sua coragem intelectual, gosto da controvérsia, sentido de responsabilidade em apresentar e debater publicamente os seus pontos de vista. São dignas de atenção e de apreço as suas tomadas de posição críticas e argumentadas contra um pensamento conservador e sem base científica que ainda persiste em muitos ambientes académicos e profissionais, fortemente corporativos, assim como na insistência em darmos sempre prioridade aos melhores cientistas e aos mais jovens.
Aprendi a respeitá-la mais ainda pelo gosto irreverente da provocação que nunca a abandonou. E a apreciar, com amizade, a coragem que nunca perdeu de defender os seus pontos de vista, mas também de respeitar quem lhe dava respostas e fazia mudar de opinião. Foi assim que tive o privilégio de discutir com a Maria todos, ou quase todos, os passos da política científica que adotámos em Portugal durante os últimos anos.
Mas, sobretudo, por ter aprendido com José Mariano Gago e compreendido com a Maria que “a ciência cura”, mas que a ciência é um campo de batalha. E a batalha só se vence com mais e melhor ciência!
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.