A Nova República Contemporânea e o Sr. Donald Trump
Revisitar e refletir sobre o que outros escreveram acerca do futuro que é hoje o nosso presente permite-nos avaliar a capacidade humana de prever e revela os contornos mais profundos da condição humana.
Herbert George Wells (1866-1946) dedicou-se a escrever livros sobre história, política, temas sociais, novelas, utopias, distopias e ficção científica, foi um visionário do futuro, teve um grande sucesso e conviveu com a elite intelectual e política tanto na Grã-Bretanha como a nível internacional. Teve o benefício de uma formação científica em biologia que lhe foi dada em parte por Thomas Henry Huxley (1825-1895), um Darwinista militante, avô dos irmãos Aldous (1894-1963) e Julian Huxley (1887-1975).
Revisitar e refletir sobre o que outros escreveram acerca do futuro que é hoje o nosso presente permite-nos avaliar a capacidade humana de prever e revela os contornos mais profundos da condição humana. Wells é um exemplo notável desse esforço que todos partilhamos em graus diferentes de procurar descortinar o futuro através da análise e da razão.
No livro Anticipations of the Reaction of Mechanical and Scientific Progress upon Human Life and Thought, inicialmente publicado em 1901 numa serie de artigos na revista A Fortnightly Review com o subtítulo de “An Experiment in Prophecy”, Wells foi um dos primeiros escritores que procurou frontalmente antever o futuro no contexto de um progresso científico e tecnológico que iria dominar o século XX e seguintes, como era relativamente fácil prever desde os finais do século XIX. Não é uma utopia mas um exercício assumido de antecipação do futuro.
É importante salientar que a transição do século XIX para o XX foi um momento de grande esperança no futuro devido à dinâmica de desenvolvimento que já estava criada com base na ciência e na tecnologia. No dia 1 de janeiro de 1901 o New York Times publicou um artigo em que se lê: “O Mundo está suficientemente otimista para acreditar que o século XX … irá abordar e ultrapassar todos os perigos e será o melhor século que este planeta, que melhora firmemente, jamais teve”. Embora alguns escritores e filósofos encontrassem sinais perturbantes nos finais do século XIX ninguém conseguiu imaginar os horrores da Primeira e Segunda Grandes Guerras.
Em Antecipations Wells profetiza o fim gradual dos Estados-Nações, que designou por Estados ostensíveis, e a emergência de um Estado Mundial, com um só sistema de leis e o inglês como língua universal. O Estado Mundial iria surgir lentamente e seria dirigido por uma entidade algo enigmática a que chamou New Republic, a Nova República. Esta é introduzida no texto com a seguinte frase: “Procurei mostrar que tanto na paz como na guerra há um processo em curso, que a partir da grande, inchada, disforme e hipertrofiada massa social de hoje em dia, com toda a inevitabilidade e toda a paciência de um processo natural, irá conduzir finalmente ao nascimento de uma classe educada, natural e informalmente organizada, um tipo de pessoas sem precedentes, uma Nova República que dominará o mundo”. Um pouco depois no mesmo texto escreve: “Os homens da Nova República serão homens críticos inteligentes, e terão a coragem de assumir as suas conclusões críticas" e “irão influenciar e controlar de muitas formas o aparelho dos governos ostensíveis”. Segundo Wells a implementação da Nova Repúbica iria ocorrer por volta do ano de 2000 e o seu domínio “poderia assegurar a paz mundial para sempre”. Quanto aos detalhes Wells reconhece que não consegue dizer muito mas afirma que: “Penso ver a Nova República nas suas fases mais desenvolvidas como uma espécie de Sociedade Secreta franca, na qual, mesmo os homens proeminentes do estado ostensivo poderão abertamente filiar-se”. A Nova República vem acompanhada de políticas sociais que lidam com as “pessoas do abismo” e conduzem a um “sistema ético reconstruído” e finalmente a uma “nova ética”.
Muitas das ideias que Wells nos legou em Anticipations não se concretizaram mas algumas ecoam claramente no presente. É extraordinário que por vias muito diferentes e muito mais subtis do que as imaginadas por Wells, a humanidade tenha criado uma entidade com semelhanças à Nova República na elite empresarial e financeira global que dirige as grandes empresas e instituições financeiras multinacionais. Esta entidade fluida, de contornos imprecisos, que designarei por Nova República Contemporânea (NRC), controla de forma tão subliminar quanto possível o desenvolvimento social, económico e político de uma grande parte da humanidade, bem como aspetos cruciais do nosso futuro comum ambiental. A sua força encontra-se na capacidade, argúcia e ambição dos seus membros e no apoio dos milhões de acionistas das empresas que gerem tão lucrativamente quanto possível.
As empresas e bancos multinacionais da NRC competem em termos de poder económico, financeiro e político com os governos onde atuam e, consequentemente, desafiam e transformam os conceitos de soberania dos Estados, governação e democracia. As causas desta situação resultam em parte da capacidade que têm de fazer lobbying junto dos governos, parlamentos, políticos e membros da administração central, de influenciar os acordos internacionais de comércio, de escolherem os países em que realizam investimentos com base na sua avaliação das políticas nacionais, e de possuírem os direitos de propriedade sobre as tecnologias vitais que utilizam. Esta partilha do poder entre os governos e as grandes empresas tem a capacidade de subverter a democracia. A simbiose tem sido especialmente intensa nos EUA através do mecanismo de lobbying, conforme foi recentemente descrito por Lee Drutman. Porém há alguns domínios da atividade humana onde as responsabilidades diretas da NRC e dos governos ostensivos estão separadas. É o caso das guerras civis e entre Estados cuja condução é da responsabilidade dos governos ostensivos. Porém, devido ao seu enorme custo em termos humanos e de recursos, a NRC influencia por todos os meios ao seu alcance as grandes decisões de intervenção militar.
Nos últimos 40 anos houve uma forte proliferação de empresas multinacionais associada ao processo de globalização. Segundo Held e McGrew o seu número passou de cerca de 7000 no início da década de 1970 para 60.000 em 1999. Grande parte têm a empresa matriz sediada em países com economias avançadas mas controlam mais de 500.000 filiais no estrangeiro. A tendência atual é a formação de empresas “metanacionais” cujos interesses, operações e ativos estão espalhados por dezenas de países pelo que deixam de ter uma relação especial ou privilegiada com qualquer deles, tornando-se entidades quase desnacionalizadas. No entanto os membros da NRC que as controlam são muito ativos em procurar influenciar os governos ostensivos no sentido de apoiar a defesa dos seus interesses. O principal critério de seleção dos países onde operam é terem leis, regulamentos e incentivos fiscais favoráveis, recursos abundantes a baixo preço, leis e regulação ambiental frouxas e corruptíveis e uma conectividade fiável, robusta e contínua.
A Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento estimou que no ano de 2012 as grandes empresas e bancos multinacionais administraram 80% dos 20 milhões de milhões de dólares das cadeias de valor do comércio mundial. O volume de vendas das grandes multinacionais é muito superior ao PIB da maioria dos países do mundo. O poder concentra-se num pequeno grupo de cerca de 150 grandes empresas e bancos cujos membros estão fortemente ligados e interdependentes o que é potencialmente instável para o grupo e para o mundo quando um dos seus membros é afetado ou colapsa, como foi o caso da Lehman Brothers em 15 de setembro de 2008. A concentração do poder económico é um processo orgânico de otimização do binómio lucro-poder que beneficia o grupo, razão pela qual os líderes dos seus membros, ou seja a NRC, a defendem intransigentemente.
A NRC não é uma Sociedade Secreta como Wells supôs no princípio do século XX, embora a transparência das suas atividades seja limitada, por exemplo, no que respeita às suas transações e ao pagamento de impostos nos países onde operam. As grandes empresas e bancos multinacionais utilizam sistematicamente o investimento direto no estrangeiro para reduzir os impostos e aumentar os lucros por meio de redes complexas de empresas holding criadas em países onde o sistema tributário é mais favorável ou em paraísos fiscais.
Estes são utilizados não apenas de forma institucional pelas empresas e bancos mas também a nível individual pelos membros da NRC. Um estudo recente de James Henry para a Tax Justice Network concluiu que as elites privadas de 139 países guardaram desde a década de 1970 entre 7,3 e 9,3 milhões de milhões de dólares de ativos financeiros em paraísos fiscais para fugir aos impostos nos seus países. Estes ativos não incluem propriedades imobiliárias, ouro, iates, cavalos de corrida, obras de arte, etc. O mesmo estudo estima que há entre 21 e 32 milhões de milhões de dólares em paraísos fiscais o que representa uma perda de receita de impostos nos países de residência da ordem de 280 milhares de milhões de dólares. Para ter uma noção mais objetiva do que significam aqueles valores note-se que o PIB dos EUA em 2015 foi cerca de 18 milhões de milhões de dólares.
Os “homens proeminentes do estado ostensivo” não se filiam na Nova República Contemporânea, como imaginava Wells, mas saltam facilmente de um grupo para outro, por vezes por meio de movimentos habilmente dissimulados. Anualmente, membros dos dois grupos encontram-se em Davos no World Economic Forum para avaliar o estado do mundo e debater o seu futuro. A NRC considera-se próxima do sistema ideal e as alternativas muito piores e mais perigosas por dificultarem ou impedirem o progresso económico, científico e tecnológico e conduzirem ao caos.
A globalização tem sido um processo extraordinariamente eficiente de diminuição da pobreza e aumento do bem-estar e qualidade de vida de centenas de milhões de pessoas através do mundo, especialmente nos países com economias emergentes e também nos países menos desenvolvidos. É um dos fatores que mais tem contribuído para a convergência económica entre os países com economias avançadas e o resto do mundo. Porém, simultaneamente, tem sido um dos principais fatores de aumento das desigualdades à escala global. Houve ganhadores e perdedores. Um estudo recente de Branko Milanovic do Banco Mundial sobre a distribuição do rendimento à escala global revela que, entre 1988 e 2008, os rendimentos da “classe média global emergente”, situada entre os percentis 15 e 65, subiram mais de 55%. Em contrapartida, os rendimentos da classe média baixa dos países com economias avançadas, situados entre os percentis 75 e 90 estagnaram ou desceram. Foram os eleitores americanos deste grupo que contribuíram decisivamente para a eleição de Trump. As mesmas faixas de eleitores contribuíram para o "Brexit" e apoiam as políticas ditas populistas que proliferam na Europa. No gráfico de Milanovic, chamado do elefante, que se está a tornar viral, falta ainda falar da cauda e da trompa do elefante. A cauda corresponde ao percentil dos 5% mais pobres no globo que se mantiveram durante aqueles 20 anos bloqueados na sua pobreza profunda e desumana. São as “pessoas do abismo” de Wells. A trompa levantada do paquiderme é o percentil 99 dos 1% mais ricos cujos rendimentos aumentaram de 60% de 1988 a 2008.
Os eleitores do Midwest dos EUA prejudicados por deslocalizações de indústrias e por novas tecnologias que diminuem o emprego votaram em Trump mas ele não vai conseguir fazer reviver um passado industrial obsoleto. Haverá um pouco mais de protecionismo mas sem que isso prejudique a NRC. Trump vai satisfazê-la plenamente com reformas nos impostos que os irão tornar menos progressivos, favorecendo assim o tal 1%, e com a desregulação dos bancos e mercados financeiros, invertendo o que Obama impôs após a crise financeira e económica de 2008-2009.
Mais preocupante é a esfera geopolítica e militar onde os poderes da NRC e dos governos ostensivos estão mais separados. Aí a impreparação política, a volatilidade e o carácter impulsivo de Trump tornam o futuro ainda mais imprevisível. Creio não ser possível descartar cenários bélicos na evolução das tensões entre EUA - Irão e EUA - China.
Quanto ao domínio ambiental e em particular ao clima se Trump decidir a saída dos EUA do Acordo de Paris ele persistirá, mas será mais difícil cumpri-lo e a China passará provavelmente a liderar o mundo no combate às alterações climáticas.