Morreu o meu amigo Miguel

Texto de Francisco Pinto Balsemão, que fundou o PSD juntamente com Miguel Veiga, enviado ao PÚBLICO e ao Expresso.

Morreu o meu amigo Miguel.

Faz-me falta e vai continuar a fazer. Foi um grande companheiro de longas décadas em várias frentes.

Antes do mais, na relação pessoal, na amizade. O Miguel era das poucas pessoas com quem eu podia desabafar fosse sobre o que fosse, sabendo que ele guardaria segredo absoluto e me daria bons conselhos. Penso que a recíproca funcionou e ele também se abria comigo sempre que necessitava.

Naquilo a que se chama vida social, divertimo-nos, nos mais diversos registos, em Portugal e no estrangeiro. Vivemos histórias inacreditáveis, algumas com inevitável preponderância do sexo feminino. E o Miguel era um grande contador de histórias, por vezes acrescentando um ponto, como ele próprio reconhecia.

Com o Miguel aprendi bastante em matéria de livros e de pintura e escultura. Ele lia muito e aconselhava bem quanto aos autores, sobretudo poetas. E tinha um especial talento para descobrir jovens artistas, aos quais comprava, com a generosidade que o caracterizava, quadros e esculturas, alguns dos quais me ofereceu.

Foi membro do Júri do Prémio Pessoa desde a sua constituição, em 1987. A atuação dele, em Seteais, durante os dois dias de reunião, era única, e muita falta nos fez nos últimos três anos em que já não pode estar presente. Tinha sempre um candidato e não escondia que intrigava para que ele vencesse. Fazia-o de uma forma tão aberta, mas ao mesmo tempo tão persistente, que mais de uma vez conseguiu ganhar na votação final.

Nesta como noutras causas, era um advogado brilhante. Um advogado à antiga, que se entregava de alma e coração aos processos e os acompanhava de A a Z. Um advogado que gostava de ir a tribunal, o que hoje vai rareando. Um advogado humano, que aceitava clientes que já sabia não lhe poderiam pagar os honorários.

O meu amigo Miguel confirmou estas mesmas qualidades, durante os 25 anos em que foi administrador não executivo, primeiro da Controljornal e depois da Impresa. Interessava-se pouco pelas contas, pelos números, pelos controlos orçamentais, etc., mas, nas grandes questões estratégicas, a sua opinião era de uma notável utilidade, sobretudo quando punha tudo em questão e nos obrigava a rever o que parecia óbvio.

Ao lado de uma vida cultural, profissional e social tão rica e em permanente ebulição, o meu amigo Miguel tinha uma atração permanente pela política. Talvez influenciado pelo pai, que foi um coerente democrata e oposicionista a Salazar, o Miguel, que, como eu, era filho único, teve a coragem de se manifestar contra a ditadura antes do 25 de Abril. Esteve na reunião da Curia, em meados de 1974, uma reunião fundamental para o arranque do PSD. Foi deputado à Assembleia Constituinte. Saiu no Congresso de Aveiro, voltou mais tarde, reconciliado com Francisco Sá Carneiro, um regresso no qual eu tive influência. No tempo em que fui presidente do partido, foi-me de uma fidelidade crítica que não esqueço. Na sua vida política, nunca com ambição de poder, de ser ministro, por exemplo, conseguiu ser independente e corajoso, mesmo quando sabia ser muito mais cómodo alinhar com a maioria. Por isso, apoiou publicamente Mário Soares, quando o PSD apoiou Freitas do Amaral.

Tudo isto sempre envolvido, embora não limitado, por um grande amor ao Porto e à sua Foz. O Miguel gostava de viajar, sobretudo a França (a mãe era francesa) e ao Brasil. Todos os anos, acompanhado da sua Blixa, que tanto sofreu e o ajudou nesta reta final (e cujo filho e neta ele tratava como se fossem filho e neta dele), ele precisava de sair regularmente de Portugal e eu recebia postais – escolhidos com intenção, outra especialidade do Miguel – das mais variadas origens. Mas essa necessidade de alargar espaços, sair da rotina, não lhe reduzia o muito que gostava da sua cidade. Sempre lutou por causas concretas no Porto, apoiou os candidatos à Câmara que entendia, mas adequados, como sucedeu nos casos de Rui Rio e de Rui Moreira. E até presidiu à Comissão de Toponímia, cargo que ele levava muito a sério.

Morreu o meu amigo Miguel.

Nos últimos longos meses, foi-se apagando suavemente. Sempre lúcido, nas visitas que lhe fiz, na sua casa na Avenida do Brasil e nas conversas telefónicas, mas progressivamente menos interessado nos temas que eu procurava introduzir. Respondia, ria-se se fosse caso para isso, mas não dava sequência. Parecia estar já a mergulhar num outro mundo, onde já não entravam duas das atividades que, até aí, mais o motivavam: ler e escrever.

É esta a última imagem, tranquila e sorridente, mas algo ausente, que conservo dele.

A esta hora, já terá chegado a esse tal outro mundo, se é que ele existe. E já estará a lutar por novas causas e a ser acompanhado por uma legião de seguidoras e seguidores.

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