E depois da festa, Draghi?
O BCE fez o mais fácil na gestão política: gerir expectativas a curto prazo.
Que é um acto de desespero não restam dúvidas. Talvez pudesse ter resultado em 2008, mas agora chega tarde, quando já toda a inércia europeia fracassou, e com uma mensagem política clara para o povo grego, "não há política monetária sem austeridade".
Em detalhe, o bilião divide-se em três fatias. A primeira, e maior, para comprar dívida soberana, não diretamente aos Estados (o que os tratados estupidamente proíbem), mas a intermediários financeiros, pagando-lhes uma comissão, até a um limite equivalente à participação de cada país no capital do BCE. A segunda, para comprar dívida emitida pelos próprios bancos. A terceira, e menor, para comprar dívida de certas agências europeias.
O objetivo é combater a deflação, partindo do pressuposto que o problema está nas dificuldades de liquidez do sistema financeiro. Mas não está. Há três anos que o BCE abre programas de financiamento a juros baixíssimos para os bancos para que estes possam conceder crédito à economia. O último, em setembro de 2014, foi um flop. Nem a banca mostrou interesse, nem o crédito aumentou. Para haver empréstimos ao investimento, é preciso antes que exista investimento e consumo. É para a austeridade que devemos olhar, se quisermos entender a deflação.
O resultado (e objetivo) do programa não é mais crédito, mas garantir juros baixos a longo prazo que valorizem todos os ativos financeiros, cujos preços disparam.
Isso tem enormes consequências redistributivas na sociedade. Como o Banco de Inglaterra demonstrou, ao analisar um programa semelhante, as ações e títulos financeiros valorizaram-se 26% (800 mil milhões de euros) e os 5% mais afortunados detêm quase metade desses valores. Foi um bodo aos ricos.
Pior, tudo isto é ineficaz (o investimento só aumenta com expectativas de rentabilidade da produção e portanto com mais procura) e até perigoso (porque este mar de liquidez pode alimentar novas bolhas especulativas, dada a estagnação). Como alguns economistas sugeriram, se Draghi escolhesse distribuir 7600 euros a cada família, ou o dobro para a metade da população europeia mais pobre, gastava o mesmo dinheiro e tinha mais efeito na economia. Aumentava a procura e a produção, criava emprego e anulava a deflação. Mas isso favoreceria a população e não a finança, e a Europa não está para essas aventuras perigosas.
Entretanto, para Portugal, a bazuca monetária está mais ao nível de uma bombinha de carnaval. Tendo em conta os limites já explicados, o total de dívida pública que o BCE poderia comprar nos mercados seria cerca de 24 mil milhões, ou seja, como o PÚBLICO demonstrou, apenas mais 5 mil milhões do que os que já detém. Mas mesmo que pudesse afectar todo o montante a comprar novas emissões, o que não pode, o Estado poderia poupar no máximo um vigésimo dos juros que agora paga e continuaria a ter uma dívida de 123% do PIB.
Aliás, o mais provável é que desperte pouco interesse: os bancos portugueses estão a usar a dívida pública que têm nos balanços para servir de colateral aos créditos do BCE.
No fim do dia, a Europa usa todos os meios para evitar fazer o essencial. Quando o que sobra é uma arma que afinal dispara uma fantasia e não uma solução, estamos a chegar ao fim das ilusões – porque nem a Grécia nem Portugal podem evitar uma reestruturação da sua dívida. E, em vez de financiar a finança, o BCE deveria ser obrigado a evitar a dependência dos mercados para proceder à única reforma estrutural que nunca foi ensaiada, depois de tudo ter falhado: relançar o investimento com a força do dinheiro público. Mas isto exigiria que a Europa existisse e que não estivesse presa na armadilha das regras tonitruantes, ineficazes e perigosas do euro. Melhor seria se a canção de Leonard Cohen não fosse só poesia: primeiro Atenas, then we take Berlin...
Mariana Mortágua, economista e deputada pelo Bloco de Esquerda; Francisco Louçã, economista e professor universitário. Os autores escrevem segundo o Acordo Ortográfico.