Colina de Santana: onde estão as alternativas?

A alternativa-mãe de todas as propostas está na mudança de paradigma.

Quando as massas se ousam opor à corrente dominante, elas recebem sempre a mesma provocação: e que alternativas têm para apresentar? E, quando se apresentam, o tratamento segue sempre um padrão comum: se forem variantes sobre as propostas oficiais, podemos conversar; se são verdadeiras alternativas, então serão classificadas como propostas irrealistas. E como vai ser assim na Colina de Santana, precisamos de estar preparados para destrinçar entre “variantes” e “propostas alternativas”.

Na Colina de Santana, a corrente oficial é protagonizada pela Estamo, que se propõe desmembrar as antigas cercas conventuais, hoje estabelecimentos hospitalares, para delas fazer espaços de loteamentos a serem urbanizados para apartamentos de luxo. As propostas de loteamento submetidas a parecer prévio da CML têm como objectivo a criação de habitações em imóveis construídos de raiz, para o que necessitam de programas extensivos de demolição de todas as construções ali existentes, poupando apenas as poucas que já têm estatuto de património classificado. As cercas, que são unidades territoriais com um passado histórico muito relevante, começam por ser desqualificadas para meras “unidades cadastrais” no documento de estratégia da Estamo, para em seguida serem desmembradas e retalhadas nas propostas elaboradas pelos gabinetes de loteamento e urbanização.

E isto é feito, apesar de os documentos elaborados a pedido da própria Estamo conterem páginas e páginas a demonstrar o relevante património cultural que está materializado naquelas cercas conventuais/hospitais, e de serem inúmeros os estudos independentes que listam valores estéticos, históricos, científicos e sociais/espirituais associados àqueles lugares.

Neste contexto, assim sumariamente descrito, o que são “variantes” e o que serão “alternativas”?

Variantes – que a Estamo agradecerá – podem incluir a retirada de um andar ou dois em cada lote, no limite mesmo a perda de um lote completo, deixar mais um museu, se for feita muita força para isso; prescindir do estatuto de luxo num certo número de fogos (os tais 25% que a assembleia municipal exige) vai ser argumentado contra, mas no final será aceite. Com um pouco de imaginação, encontraremos um bom punhado de outras variantes “realistas”, verdadeiras propostas construtivas, no sentido literal e figurativo da palavra.

E onde estão as alternativas? A alternativa-mãe de todas as propostas está na mudança de paradigma. Em vez de uma estratégia de loteamento/urbanização, precisamos de uma estratégia de preservação da significância cultural das cercas conventuais/hospitais da Colina de Santana.

Reconhecidos que estão valores culturais tão diversificados, que os cidadãos de Lisboa atribuem a estes espaços, e sendo eles marcos tão relevantes da história, da ciência e da cultura de Lisboa e do país, é quase obsceno pensar que tudo aquilo se pode reduzir a lotes distribuídos a esmo, reduzindo a preservação do património construído à manutenção de umas poucas peças descontextualizadas, remetidas para reminiscências anedóticas, sem o mínimo de respeito pela integridade e autenticidade daqueles espaços culturais.

Uma política de preservação – a alternativa – deverá partir do reconhecimento da significância cultural daqueles espaços e da agregação dos contributos que identificam e definem os valores culturais que a suportam. Depois deste primeiro e decisivo passo, o caminho é claro, bastando buscar inspiração nas cartas internacionais e na experiência de países civilizados, como a Austrália com a sua Carta de Burra, a English Heritage, ou em recomendações produzidas por instituições como o Getty Conservation Institute. A Direcção-Geral do Património Cultural, que tem no seu seio gente que bem conhece estas práticas, deveria ser a primeira a proclamar alto e bom som: “Os terrenos das antigas cercas conventuais da Colina de Santana não podem ser desmembradas em loteamentos para construção de habitações.”

Uma política de conservação não significa imobilismo, nem conservar tudo em formol, como os detractores desta linha de actuação já começaram a qualificar, mas sim a procura dos usos, ou das restrições ao uso, que melhor permitam preservar os valores culturais identificados. Simples e directo. Uma política que siga o princípio da intervenção mínima, para assim se preservar o máximo!

A política de loteamento/urbanização que a Estamo quer ver implementada é um crime de lesa-património e de lesa-cultura. Uma pura operação de especulação imobiliária, tirando partido da conversão de espaço cultural em terreno urbanizado fortemente valorizado, com mais-valias de dimensão gigantesca e de destino mais do que duvidoso. A dimensão deste crime social pode ser bem ilustrada na feliz imagem que o eng.º Vítor Cóias apresentou naquela sessão. Para permitir os loteamentos previstos pela Estamo, os entulhos resultantes das demolições de construções hoje existentes nas cercas conventuais/hospitais dariam para encher um número de camiões que, em linha, ocupariam as duas faixas da Marginal, entre Lisboa e Cascais.

Esta será a dimensão da destruição de património cultural do país que a Estamo se prepara para executar. E assim será, se os lisboetas, e os portugueses em geral, não reagirem a este atentado cultural.

Geólogo, investigador (ap.)

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